COLUNA Adriano Lima Neves

UM SOBRADO, MUITA HISTÓRIA...

Publicado em 16/09/2022 às 06:51

Por Adriano Lima Neves A história do sobrado das quatro portas, imóvel imponente, com sacadas se debruçando sobre a avenida principal de Santa Leopoldina, esquina com a rua Cesar Müller, é das mais ricas das muitas histórias passadas em nossa cidade. De maior sobrado e casa comercial da cidade, passando por ponto de parada de caixeiros viajantes e mascates, descanso do Rei do Baião Luiz Gonzaga e morada de uma sobrinha da lendária Martha Wolkart, esse sobrado foi o local de recepção, descanso e alimentação das tropas revolucionárias a caminho de Vitória, em outubro de 1930, além de sede de reuniões pró-3º Eixo durante a Segunda Guerra Mundial e, em seu pavimento térreo, ponto de encontro das comemorações durante as copas do mundo de futebol de 1958 e 1962, “assistidas” no rádio.

Mas, a importância histórica e, principalmente, a importância cultural desse sobrado teve início na ficção, mais precisamente na obra literária que levou o nome de Santa Leopoldina para o mundo, e se transformou, junto com Os Sertões, de Euclides da Cunha, no primeiro “best seller” da Literatura Brasileira. Estou falando do livro “Canaã”, do escritor maranhense José Pereira da Graça Aranha, ou Graça Aranha, como ficou mais conhecido.

No livro, esse sobrado é citado como “o sobrado das quatro portas”, de propriedade do comerciante Roberto Schultz, que, na realidade nunca existiu, sendo apenas um personagem criado por Graça Aranha. Esse sobrado é onde apearam os dois personagens principais do livro, Lentz e Milkau, este segundo, tendo feito uma observação na sua chegada à cidade, dizendo que “apenas guardava na retina inconsciente a vaga sensação de uma cidadezinha alemã no meio da selva tropical”. O livro ainda discorre sobre o sobrado: “Tinha quatro portas de frente, e as mercadorias inúmeras davam-lhe uma feição de grandeza e opulência. Ali se negociava em tudo, em fazendas, em vinhos, em instrumentos de lavoura, em café; era um desses tipos de armazém de colônia, que são uma abreviação de todo o comércio e conservam, na profusão e multiplicidade das coisas, certo traço de ordem e harmonia”.

A partir de 1917, já não mais na ficção, esse sobrado passou a abrigar o Café Mundial, criado pelo alagoano André Bizerra Lima, meu avô, que chegara ao Porto do Cacheiro no final do século XIX, atraído pela pujança comercial e pelas oportunidades que Santa Leopoldina oferecia aos que aqui chegavam. O Café Mundial transformou-se no ponto comercial mais tradicional de Santa Leopoldina, com a primeira bomba de gasolina da cidade, e funcionou ininterruptamente desde 1917 até o início da década de 1970. Era para onde os fregueses se dirigiam para ler o jornal do dia, discutir política e futebol. Nas copas do mundo, como já dito, principalmente as de 1958 e 1962, reuniu grande número de torcedores para acompanhar os jogos da seleção brasileira através de transmissão de rádio.

Essa popularidade do ponto comercial e essa relação com o futebol – as vitórias do Cachoeirano FC eram comemoradas ali – levaram Clarindo Lima, filho de André Lima a ser presidente do clube, que além de ser um time de futebol, era um clube social que promovia bailes de gala e bailes carnavalescos. Durante sua gestão, foi o responsável pela implantação do uniforme preto e branco do Cachoeirano FC, com uma listra transversal, por ser vascaíno roxo. Esse é o motivo da cor do uniforme do Cachoeirano FC ser preto e branco até os dias de hoje. E a atuação de Clarindo Lima como proprietário de um estabelecimento comercial tão popular, e também como presidente do Cachoeirano FC, o fizeram chegar à Câmara Municipal de Santa Leopoldina, elegendo-se vereador.

Nas décadas de 1950 e 1960, já com Clarindo Lima à frente, o Café Mundial continuou como referência de ponto de parada de viajantes em Santa Leopoldina. Ali paravam os ônibus e lotações, além dos caminhões do frigorífico Toniato, oriundos de Itarana, e os muitos caminhões que transportavam a produção de café da região centro-serrana para o porto de Vitória, pois o transporte de canoas através do porto fluvial do rio Santa Maria já não existia mais.

Tudo convergia para Santa Leopoldina, pois não havia outras estradas para se chegar a Santa Teresa, Itarana, Itaguaçu, Afonso Cláudio, Colatina e Baixo Guandu que não fosse por Santa Leopoldina.

Outro fator que contribuiu para o grande movimento do Café Mundial foi a obra de construção das Usinas de Rio Bonito e Suíça, iniciada nos anos 1950. Por ter trazido muitos trabalhadores para a cidade, deu vida ao comércio de Santa Leopoldina por quase uma década.

Porém, na segunda metade da década de 1960, com o fim das obras dessas duas usinas hidrelétricas, o movimento do comércio de Santa Leopoldina entrou em novo declínio, somado ao que já havia se iniciado na década de 1930, quando as atividades do porto do Cachoeiro cessaram. Outro fator responsável por esse declínio foi a inauguração das BR’s 262 e 259, além da estrada que liga Santa Teresa à BR 101, em Fundão. Isso permitiu uma ligação direta das cidades de Afonso Cláudio, Santa Teresa, Itarana, Itaguaçu, Colatina, Baixo Guandu e do leste de Minas Gerais diretamente com Vitória, deixando de utilizar Santa Leopoldina como passagem obrigatória.

E essa fase de enfraquecimento do comércio de Santa Leopoldina foi fatal para o Café Mundial, para a bomba de combustíveis e até para o primeiro serviço de ônibus que ligava Santa Leopoldina a Vitória, inaugurado pelo irmão de Clarindo Lima, Achiles Lima, no início dos anos 1950. E hoje o sobrado das quatro portas, atualmente pertencente à família Vervloet, é apenas uma testemunha solitária
dessa rica história.


É muita história em um só sobrado...
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2 Comentários

  1. Lembro do Café Mundial,do Sr.Clarindo ,da Coréia(ônibus do Sr.Achiles.Parabéns por reativar nossa memória. Nilza

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    1. Agradeço a pessoas como você, que acompanham esse trabalho voluntário que faço, e com certeza, repassa essas informações para as novas gerações. Esse é o objetivo principal. Obrigado!

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