COLUNA Adriano Lima Neves

Um muar, dois muares, três muares...

Por Adriano Lima Neves


O que fazia um menino esperto de dez anos de idade em Santa Leopoldina há um século? Bem, se fosse um menino esperto mesmo, seria um apontador de muares.

A atividade de aluguel de pastos no entorno do movimentado Porto do Cachoeiro, hoje a sede da cidade de Santa Leopoldina, era uma boa complementação de renda para os proprietários de terrenos próximos à cidade, pois havia uma demanda muito grande por locais de descanso e alimentação para as tropas que chegavam carregadas de sacas de café sobre o lombo de dezenas e até centenas de burros e mulas. Essas tropas, após dias de viagem por serras e margeando rios, traziam ao Porto do Cachoeiro a produção de café de toda uma vasta região, que se estendia desde as partes altas da colônia de Santa Leopoldina e do núcleo Timbuy, hoje Santa Teresa, até Mutum, no leste de Minas Gerais, passando pelas regiões onde hoje se localizam os municípios de Santa Maria de Jetibá, Itarana, antiga Figueira de Santa Joana, Itaguaçu, antiga Boa Família, Afonso Cláudio e Baixo Guandu.

Se o leitor de O Leopoldinense prestar atenção nos detalhes de diversas fotos antigas da sede da cidade de Santa Leopoldina, notará que o entorno do Porto do Cachoeiro era formado exclusivamente por pastos de aluguel, diferente de hoje, quando a vegetação da maioria desses pastos já se recuperou e se transformou novamente em frondosas matas, o que é um orgulho para a nossa cidade, pois Santa Leopoldina figura hoje como uma das cidades capixabas com a maior área verde preservada na área urbana.

Locais como o atual morro do monumento ao imigrante, conhecido como Morro do Cruzeiro, são exemplos dessa transformação de um local que serviu de pasto de aluguel e que hoje se transformou novamente em uma mata. Por anos, esse local de propriedade da família Knust, foi utilizado para descanso e alimentação das tropas que atuavam no transporte de mercadorias no Porto do Cachoeiro. Isso durou até 1950, quando o terreno foi vendido à Prefeitura de Santa Leopoldina para a construção do Monumento ao Imigrante. Até o pequeno local onde hoje é o Parque da Independência já foi uma área de descanso e alimentação de tropas, pois era propriedade da família Vervloet, dona de grandes casas comerciais em Santa Leopoldina e Santa Teresa.

Outro local muito utilizado para o descanso e alimentação de tropas era a encosta onde hoje é a rua Niterói, também recuperada em grande parte por mata. 

Naquela antiga área de pasto havia dois facilitadores para que o local fosse um dos preferidos pelos proprietários de tropas: um era a fartura de água do córrego Crubixá, de fácil acesso para os animais saciarem a sede. Outro era a existência de uma pequena e estreita ponte que servia de ponto de contagem do número de cabeças, pois os valores do aluguel eram calculados com base no número de animais. E é nesse momento que entravam em cena os meninos espertos de Santa Leopoldina, pois era a oportunidade de ganhar alguns réis como apontadores de muares, que em dias de grande movimento chegavam a “dez tropas’, o equivalente a mil animais, número que mostra o tamanho do movimento de carga e descarga no Porto do Cachoeiro naquela época.

Para quantificar o volume de carga e a movimentação de mercadorias que passavam pelo Porto do Cachoeiro, basta dizer que cada animal carregava mais de cento e vinte quilos, sendo sessenta em cada lado do arreio e mais uma quantidade de peso em cima do lombo, cumprindo trechos de cerca de vinte e cinco quilômetros por dia.

Além dos meninos apontadores, dos proprietários de pastos de aluguel e do muladeiro, como era chamado quem fazia o comércio de compra e venda de muares, as grandes tropas que chegavam e saíam de Santa Leopoldina criavam uma grande demanda por diversas outras profissões. Havia o seleiro, o funileiro, o ferreiro, o ferrador de burros, o amansador de animais e ainda o curandeiro.

O seleiro era um artesão especializado na fabricação de selas, do arreamento e da cangalha dos animais. O funileiro era o profissional da forja e da bigorna e produzia a maioria dos utensílios usados pelas tropas, dentre eles os tachos, os canecos e as lamparinas. Não era confundido com o ferreiro, que era o profissional que se dedicava à fabricação de ferraduras, que por sua vez eram “instaladas” nos animais pelo ferrador. O amansador de animais, como o nome já diz, era o encarregado de domar os animais novos e ariscos para que passassem a aceitar o arreio e a carga. E havia ainda o curandeiro, uma espécie de veterinário sem formação, mas que, usando técnicas aprendidas ao longo de anos, curava os animais com a utilização de ervas e outros produtos manipulados por eles próprios, como os velhos boticários. Em Santa Leopoldina, mereceu destaque o Sr. Antônio Pimentel, que morava exatamente onde hoje é a rua Niterói, antigo local de pastos de aluguel. O Sr. Antônio Pimentel, mais conhecido como Antônio Veterinário, além de cuidar muito bem dos animais, era o melhor assador de carnes da cidade, frequentemente convidado para as festividades onde se servisse churrasco.

E além dos meninos que contavam animais para os donos de pastos de aluguel, outras crianças  mais pobres que moravam à beira das estradas se beneficiavam de uma outra atividade mais modesta, a catação de ferraduras perdidas pelas tropas, que eram vendidas para os próprios tropeiros, mas por um preço bem menor do que nas ferrarias.

A escolha do Porto do Cachoeiro como o ponto de convergência de todas essas tropas se deve a um detalhe geográfico. O local onde hoje é a cidade de Santa Leopoldina era exatamente o início do trecho encachoeirado do rio Santa Maria da Vitória, que deixava de ser navegável na última cachoeira do rio, a cachoeira do Cláudio. A população de Santa Leopoldina a conhece como “correnteza do rio grande”, imortalizada no filme “O Vale do Canaã”, produzido pelo diretor de cinema Jece Valedão, em 1971.

Em compensação, era a partir dali que o rio Santa Maria oferecia uma via de fácil navegação diretamente até o porto da capital, Vitória, o que fazia com que todas as tropas que faziam o transporte terrestre convergissem para aquele local, transformando Santa Leopoldina no maior entreposto comercial do Espírito Santo entre o final do século XIX e as três primeiras décadas do século passado.

Esse protagonismo de Santa Leopoldina no transporte de mercadorias fez com que surgissem grandes casas comerciais, pois as tropas que vinham de outras regiões trazendo principalmente café precisavam retornar aos seus pontos de origem com os mais variados produtos. Eram produtos em sua maioria importados diretamente da Alemanha, através do Porto de Hamburgo, cuja negociação era facilitada pela comunicação, uma vez que tudo era formalizado na língua alemã, vantagem que os comerciantes da capital não tinham. Por isso, é de se destacar que esses produtos nem sequer transitavam pelo comércio e armazéns de Vitória, pois dos navios ao largo da baía, desciam diretamente para as canoas, que os conduziam a Santa Leopoldina, pelo Rio Santa Maria da Vitória. E quando os representantes de firmas europeias vinham ao Espírito Santo visitar os seus clientes, primeiro atendiam os comerciantes de Santa Leopoldina, para depois, se sobrasse tempo, atender aos comerciantes da capital.

A principal rua de Santa Leopoldina, centro nervoso de toda essa atividade, foi onde se instalaram as grandes casas comerciais, geralmente localizadas no andar térreo de grandes e suntuosos sobrados, cuja parte superior servia de residência para as famílias dos proprietários. Esses sobrados ficavam estrategicamente localizados de frente aos ranchos de tropas, que beiravam o porto, para que pudessem ficar de olho na movimentação, inclusive de seus empregados, através das sacadas das varandas dos sobrados. Merecem destaque entre essas grandes casas comerciais a J. Reisen & Cia., Vervloet, Irmãos & Cia., C. Müller, Alberto Stange, em sociedade com Frederico Ewald, Franz & Meyer e Sebastião Guedes.

Outros homens de negócio com grande influência na atividade portuária eram os proprietários de tropas. Em Santa Leopoldina, os proprietários de tropas que mais se destacaram foram Francisco Ricardo Schulthais, Guilherme Frederico, Augusto Krüger, Olympio Pereira, Florêncio Friebe, Miguel Pagung, Emilio Arnholz, Henrique Dettmann, João Felipe Klein, Antônio Müller, Horácio Nunes, Osvaldo Azevedo Rodrigues, Guilherme Pimentel, João Vervloet, Dalmácio Espindula, Florêncio Berger e alguns outros. 

Não menos importantes no contexto dessa atividade portuária do que os comerciantes e os proprietários de tropas eram os tropeiros, homens que efetivamente conduziam as tropas. Alguns que se destacaram nessa profissão e merecem destaque na história de Santa Leopoldina são José Pedro, João Puranga, João Cotó, Alipio e Alberto Borocó, Antônio da Jove e José Coutinho da Vitória, conhecido como José Pretinho.

O movimento intenso do porto demandava agilidade nas negociações e na carga e descarga de mercadorias das tropas e das canoas. Como tempo sempre foi dinheiro, tanto tropeiros quanto canoeiros viviam apressados, pois ganhavam por número de viagens ou pelo quantitativo transportado. Isso gerava uma certa tensão na preferência pelas mercadorias na carga e descarga de tropas e canoas, o que, de vez em quando, gerava brigas, inimizades e até crimes.

Mas o pesado trabalho desses homens rudes, que passavam dias e dias longe de seus lares, vivendo uma vida perigosa e cheia de aventuras era minimizada ou desafogada nas noites boêmias de Santa Leopoldina. Nessa época, auge do movimento comercial do Porto do Cachoeiro, havia na cidade uma rua só de prostitutas, a chamada “Rua do Gringo”, atual Rua Floriano Peixoto, para onde se dirigiam tropeiros, canoeiros e outros trabalhadores, geralmente solteiros, após um dia de trabalho. Para não fazer feio, um providencial banho de rio era indispensável, pois o preço da companhia de uma dama variava de acordo com as condições de higiene do freguês. Os bem casados, os fiéis ou aqueles que precisavam juntar economias, ficavam no rancho tocando uma viola, conversando ou cantando, saboreando uma suculenta feijoada, prato mais comum na alimentação deles, sempre regada a uma boa cachacinha.

Outro detalhe dessa época era como o comerciante tratava os seus funcionários. Além de vigiá-los da própria sacada de seus sobrados, os comerciantes não se furtavam de ações  que naquela época tornavam a vida do empregado de comércio muito pesada, estressante e humilhante, pois os faziam trabalhar  das sete horas da manhã às sete horas da noite, hora em que a Prefeitura sinalizava o final do expediente, emitindo um aviso para todos fecharem as portas. Há registros de que esse aviso se tornou cada vez mais veemente, chegando ao ponto de a prefeitura ter que explodir uma bomba toda noite para impor o horário de fechamento das casas comerciais.

Driblando essa fiscalização, os comerciantes mantinham seus empregados trabalhando até às dez horas da noite com as portas fechadas, obrigando-os a atender as tropas e canoas que chegavam fora do horário comercial, momento mais rentável para os comerciantes, pois nesse horário as negociações eram feitas informalmente, sem a cobrança de impostos. Quando fiscalizados, usavam a estratégia de justificar que os empregados estavam arrumando as mercadorias e as prateleiras para as vendas do dia seguinte.

Essa fiscalização da Prefeitura de Santa Leopoldina, que era considerada pelos comerciantes  como um calo nos seus calcanhares, foi a gota d’água para que eles usassem o seu poder e exigissem que a fiscalização saísse das proximidades do porto, passando a coletoria de impostos a funcionar em outro local, a rua Costa Pereira, conhecida como Rua de Cima. 

Para que a fiscalização não fosse prejudicada e para manter a agilidade na comunicação entre a sede da Prefeitura e a coletoria de impostos, foi instalada a primeira linha telefônica do Espírito Santo, entre as ruas Taunnay & Telles e Costa Pereira, em 16 de abril de 1887, criando uma efetiva e ágil linha de comunicação entre esses dois órgãos públicos. 

E o ano de 1918, novamente os negociantes e comerciantes que atuavam no Porto do Cachoeiro mostraram o seu poder: exigiram que a sede da Prefeitura Municipal, à época localizada na rua Taunnay & Telles, também saísse das proximidades do centro comercial da cidade, sendo esse o motivo da sua nova sede ter sido  construída tão longe do centro, lá na entrada da cidade, onde está até hoje.

Isso mostra que o poder dessa atividade econômica era tão grande que trocava até a sede da Prefeitura Municipal de lugar...



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