COLUNA Adriano Lima Neves

Incêndio Revolucionário?

Por Adriano Lima Neves


A preservação do casario ainda hoje existente no sítio histórico de Santa Leopoldina nem sempre foi uma imposição legal, realizada por força de tombamento ou ameaça de multas aos proprietários. Houve um tempo em que os administradores públicos e os próprios proprietários dos imóveis faziam questão de preservá-los para a posteridade. É o caso do belo imóvel que havia onde hoje é o Fórum Graça Aranha, na principal rua de Santa Leopoldina.


Até 1939, esse imóvel foi tratado como uma relíquia pelos seus proprietários e também pela Administração Municipal, que nessa época era liderada pelo prefeito Cesar Müller. E havia um motivo muito especial para que esse imóvel fosse tão bem cuidado pelos seus proprietários, com a providencial ajuda da Administração Municipal: é que ali morou José Pereira da Graça Aranha, ou simplesmente Graça Aranha, escritor maranhense que imortalizou a cidade de Santa Leopoldina na literatura brasileira e mundial, e de cujas janelas e sacadas deve ter colhido muitas inspirações para a construção do enredo do livro Canaã, primeiro best-seller da literatura nacional, juntamente com Os Sertões, de Euclides da Cunha. Graça Aranha morou ali no ano de 1890, após a Proclamação da República, quando foram implantadas comarcas nas principais cidades de todos os estados brasileiros. E Santa Leopoldina era uma delas.


O imóvel era um belo sobrado de dois pavimentos, com o térreo funcionando como ponto comercial, assim como a quase totalidade dos sobrados que compunham a arquitetura da rua principal de Santa Leopoldina naquela época. O pavimento superior era dividido ao meio, formando duas residências, acessadas através de uma escada central, dividindo-se ao final para a esquerda e para a direita, providencialmente indicadas por dois desenhos de uma mão com o dedo indicador apontando cada direção. 


Nesse ano de 1939, fatídico para esse imóvel, aconteceu o maior incêndio em área urbana da história de Santa Leopoldina. Esse belo imóvel, ainda muito bem preservado, virou escombros e cinzas após o fogo tê-lo consumido por inteiro.


Duas famílias moravam nesse imóvel. Uma era o casal de austríacos Andreas e Mina Kandras,  A outra família era a de um senhor chamado Getúlio, que não era de Santa Leopoldina, que vivia com a esposa e um filho, ainda bebê.


Como o incêndio se iniciou em um horário avançado da noite, as famílias só perceberam a sua gravidade quando já era um pouco tarde. Mesmo assim, a senhora Mina Kandras, ajudada pelo marido Andreas, conseguiu salvar muitos pertences, principalmente louças e utensílios de cozinha, que mergulhou em um tanque que havia nos fundos do imóvel. Ela também conseguiu salvar muitas roupas e outros objetos, que atirou pela janela. Atirou também parte dos móveis e o que não se quebrou, conseguiu salvar. Só esqueceu de acordar um parente que havia hospedado e que dormia no sótão. Um piano que havia nesse pavimento desabou junto com o assoalho de madeira e a população de Santa Leopoldina por muitos anos dizia que o piano caiu tocando uma música conhecida da época. Pena que não consegui descobrir que música é essa até hoje.


Já a família do senhor Getúlio entrou em pânico e não salvou nada. Não fosse a ação heroica de Dona Nina Torezani, proprietária do Hotel Globo, o filho do casal, que dormia no berço, e o parente do casal Kandras, que dormia no sótão, teriam sido as vítimas fatais desse incêndio. Ela acordou o rapaz e retirou a criança do berço a tempo de salvar ambos.


A solidariedade e o espírito coletivo do povo de Santa Leopoldina foram cruciais para que esse incêndio não se alastrasse por toda a cidade, pois como é sabido, os imóveis em Santa Leopoldina eram, e são ainda hoje, colados uns aos outros por toda a extensão da rua principal da cidade. 


Para salvar os outros imóveis do incêndio foi feita uma corrente humana em busca de água, que se iniciava desde o rio Santa Maria até o local do incêndio, com a população passando baldes com água de mão em mão. Segundo consta, foi usado todo o estoque de baldes da loja que ardia em chamas e de todas as outras casas comerciais da cidade, uma vez que o corpo de bombeiros vindo da capital só conseguiu chegar ao local muitas horas depois e apenas concluiu os trabalhos iniciados pela população de Santa Leopoldina. É que o caminhão dos bombeiros era muito grande e teve dificuldades de ultrapassar as três pequenas pontes que havia na altura da localidade de Três Pontes, que hoje, apesar de só existir uma ponte no local, manteve o nome em virtude desse fato. 


Segundo informações da época, o fogo teria se iniciado em um terreno ao lado do imóvel, pertencente à família de Antenor Guedes, onde ironicamente hoje está instalada a base dos Bombeiros Civis de Santa Leopoldina. 


Há até os dias de hoje suposições de que o incêndio foi criminoso, em represália ao assassinato do prefeito Djalma Coutinho, ocorrido um ano antes, no dia 15 de junho de 1938, e o alvo seria a residência da família de Antenor Guedes, inimigo do prefeito, localizada mais ao fundo desse terreno, já no nível da rua de cima.


Para entender essas suposições de incêndio criminoso, vou levar o leitor de O Leopoldinense a relembrar a Revolução de 1930, um movimento revolucionário que envolveu praticamente todos os estados brasileiros, e que também teve repercussões em Santa Leopoldina, e que nesta semana está completando noventa anos.


Nesse período, o Presidente do Governo do Espírito Santo, o que equivale hoje ao cargo de governador, era Aristeu Borges de Aguiar, que havia tomado posse em 30 de junho de 1928.


Em março de 1930, Júlio Prestes, o candidato apoiado pelo presidente Washington Luís, venceu as eleições presidenciais e tomaria posse em novembro daquele ano. Tomaria, pois Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba, estados que haviam apoiado o candidato derrotado Getúlio Vargas, não aceitaram o resultado das eleições, alegando fraude, e deram início a esse grande movimento revolucionário, que acabou culminando com um golpe, levando Getúlio Vargas ao poder. 


E o chefe do governo do Espírito Santo, Aristeu Borges de Aguiar, teve que fugir a bordo do cargueiro italiano Atlanta, na manhã de 16 de outubro de 1930, refugiando-se na capital federal, o Rio de Janeiro. Com a fuga de Aristeu Borges de Aguiar, e a tomada do poder pelas forças revolucionárias, assumiu o governo capixaba uma Junta Governativa, composta por João Manuel de Carvalho, Afonso Correia Lírio e o capitão João Punaro Bley, nomeado interventor posteriormente, em 15 de novembro de 1930.  É sabido que vários outros acontecimentos ocorreram no desenrolar dessa revolução, mas esses detalhes não são o objeto principal deste texto.


E, durante essa revolução, Santa Leopoldina foi palco de um acontecimento ocorrido em muitos municípios do interior do Espírito Santo pelos quais passaram as tropas revolucionárias a caminho de Vitória, nossa capital, em marcha para tomar o governo. Na manhã de 18 de outubro de 1930, avisada da passagem dos revolucionários vindos de Minas Gerais, estado que comandava o movimento revolucionário no centro do país, toda a população de Santa Leopoldina se refugiou no interior do município, com homens, mulheres e crianças se escondendo em meio às matas, deixando a cidade deserta. Apesar de todo o movimento portuário, de tropas e das casas comerciais da cidade, ninguém manteve seus estabelecimentos abertos.


Apenas dois bravos cidadãos, e que merecem registro na história da nossa cidade, permaneceram à frente de seus comércios: a corajosa Dona Nina Torezanni, a proprietária do Hotel Globo, e o comerciante André Bezerra Lima, proprietário do Café Mundial, principal ponto de parada e reabastecimento de viajantes em Santa Leopoldina.


Nunca consegui, nem por dedução, imaginar o motivo que levou a Dona Nina a manter o seu estabelecimento aberto. Talvez fosse uma tentativa de acalmar os ânimos dos revolucionários, oferecendo-lhes um local para um banho ou descanso.


Mas o comerciante André Bezerra Lima, percebendo o risco de saque, vandalismo ou violência por parte dos revolucionários mineiros, manteve o seu estabelecimento aberto, oferecendo bebidas e tudo mais para que os cansados e famintos revolucionários pudessem se saciar. Essa atitude evitou que as casas comerciais de Santa Leopoldina fossem saqueadas ou vandalizadas pelos revolucionários, e nem a população sofreu qualquer violência, uma vez que os revolucionários perceberam que não havia nenhuma força de resistência para fazer frente a eles, o que foi entendido como um gesto de simpatia à causa revolucionária, embora o comerciante André Lima tenha mantido, durante todo o tempo em que os atendeu, dois revólveres municiados e engatilhados ao alcance das mãos, para o caso de uma emergência. 


Em outros municípios onde houve resistência, a violência imperou, como foi o caso de Baixo Guandu, onde o cabo Aldomário Falcão, na tentativa de impedir a invasão do Espírito Santo pelas forças revolucionárias mineiras, tombou em combate no dia 10 de outubro de 1930, sendo ainda hoje considerado um herói na cidade.


Mas graças à corajosa atitude de Dona Nina Torezani e, principalmente, da frieza, inteligência e senso de dever do comerciante André Bezerra Lima, a passagem dos revolucionários mineiros por Santa Leopoldina se deu de maneira pacífica, sem incidentes, e o grupo saiu da cidade no mesmo dia, chegando à Vitória na mesma noite, para destituir o governo estadual do Espírito Santo, juntamente com outros grupos de revolucionários que entraram no estado por vários outros caminhos.


E em Santa Leopoldina, o prefeito Carlos João Avancini foi destituído, tendo assumido o governo municipal uma Junta Governativa composta por Porfírio José Furtado de Mendonça, João Daniel Nunes Pereira e André Bezerra Lima, o comerciante proprietário do Café Mundial que havia recepcionado os revolucionários vindos de Minas Gerais.


A história realmente é um emaranhado de fatos que se entrelaçam para poder dar sentido a outros fatos. E nesse caso, foi preciso levar o leitor de O Leopoldinense até o ano de 1930 para explicar um incêndio ocorrido em 1939. 


Mas é fácil de explicar essa relação: é que o senhor Antenor Guedes, o proprietário da casa que supostamente seria o alvo do incêndio que destruiu o imóvel onde Graça Aranha morou, era um homem culto, politizado, e era muito amigo do comerciante André Bezerra Lima, também um homem extremamente culto e muito envolvido com a política local.


Em função desse perfil e pela boa oratória mostrada nos discursos políticos, Antenor Guedes e André Bezerra Lima geravam uma certa dose de inveja em alguns políticos adversários, entre eles o prefeito Djalma Coutinho, eleito em 1936.  E, aproveitando-se da implantação do Estado Novo, regime de exceção criado por Getúlio Vargas em 10 de novembro de 1937, e querendo permanecer no cargo, Djalma Coutinho os acusou de serem simpatizantes do comunismo, o que bastou para serem presos e enviados para o presídio do Goyamu, na capital. Somente após comprovar a falta de fundamento da denúncia do prefeito Djalma Coutinho e após comprovar a sua participação no episódio da passagem das forças revolucionárias por Santa Leopoldina, André Lima foi inocentado e libertado, permanecendo Antenor Guedes ainda preso.


E na noite de 15 de junho de 1938, ao conversar com correligionários no interior da farmácia do senhor Frederico Thines, o prefeito Djalma Coutinho, que havia conseguido o intento de permanecer no cargo, foi assassinado a tiros pelo irmão de Antenor Guedes, Gustavo Guedes, que mesmo com uma deficiência em uma das pernas, fugiu do local a cavalo, tendo à época desaparecido de forma espetacular de Santa Leopoldina, numa fuga cinematográfica de canoa, como acreditam alguns, nunca sendo alcançado e punido pelo crime.


E o belo imóvel onde morou o escritor Graça Aranha, e que poderia ser mais um a testemunhar o apogeu que viveu a nossa cidade no passado, e sem nenhuma culpa em qualquer desses ocorridos, acabou sendo vítima de um entrevero político, dos muitos que ocorreram no interior do Espírito Santo ao longo da história.


Ainda bem que o nome do edifício que foi construído no local do incêndio é Fórum Graça Aranha... 



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