COLUNA Adriano Lima Neves

Canoeiros do rio Espírito Santo

Por Adriano  Lima Neves

Ao visualizar o título deste texto, talvez o leitor de O Leopoldinense possa ter estranhado a falta de familiaridade com o termo “rio Espírito Santo”, uma vez que não existe em nossa região e nem mesmo no nosso estado um rio com esse nome. Mas já explico.


A minha pretensão com a publicação da coluna desta sexta-feira é resgatar um pouco da história do frenético transporte fluvial que existiu entre o Porto do Cachoeiro, atual cidade de Santa Leopoldina e o porto da capital, Vitória, através do trabalho incansável dos briosos canoeiros do rio Santa Maria da Vitória.


Tratar o nome desse rio inicialmente como Espírito Santo foi proposital e teve o intuito de chamar a atenção para o fato de que ele foi chamado assim em 1535, quando o Donatário Vasco Fernandes Coutinho iniciou a exploração do entorno da sede da sua capitania, a Vila do Espírito Santo, hoje a cidade de Vila Velha.


Ao adentrar o canal que forma a baía de Vitória, Coutinho e seus exploradores achavam se tratar de um rio, e o chamaram rio Espírito Santo desde o ponto em que as embarcações deixavam o mar aberto e iniciavam a navegação no canal, na altura do Morro do Moreno. Somente após identificarem a verdadeira foz do rio na altura do local que hoje se chama Lameirão, próximo à Ilha das Caieiras, é que perceberam se tratar de uma baía ou braço de mar. A partir de então, esse trecho passou a ser reconhecido como a baía de Vitória e consequentemente, o que chamavam rio Espírito Santo passou a se chamar rio Santa Maria da Vitória, numa alusão à santa católica e à vitória definitiva dos colonizadores obtida sobre os índios selvagens, e que deu origem à ilha de Vitória, hoje a nossa capital.


Certamente a navegação no rio Santa Maria não foi inaugurada pelos colonizadores liderados por Vasco Fernandes Coutinho, e nem tampouco pelos canoeiros que transportaram as primeiras levas de imigrantes que formaram a colônia de Santa Leopoldina. Quem certamente já usava o rio Santa Maria como via de transporte eram os índios Goitacazes que habitavam as suas margens, principalmente a região do Una, no atual município de Santa Leopoldina. Provavelmente as suas embarcações eram bem mais precárias e primitivas do que as canoas que passaram a deslizar sobre as águas do rio Santa Maria a partir do século XIX.


Nessa época o transporte fluvial no rio Santa Maria era feito predominantemente em pequenas canoas, que com o passar dos anos, e principalmente após a chegada dos imigrantes europeus e o aumento da produção de café, tiveram que ir se adequando em forma e tamanho, em função da necessidade cada vez maior de aumentar a capacidade de carga.


O transporte da crescente produção de café da região, que se iniciou na segunda metade do século XIX com a chegada dos imigrantes europeus, foi o responsável pela padronização das canoas que atuavam no rio Santa Maria. Algumas eram feitas em um só tronco de madeira, peroba ou amarelo, habilmente escavado pelas mãos de carpinteiros especialistas nesse ofício. Mas essa técnica ficou limitada às canoas menores, pois as suas paredes laterais eram escavadas ao máximo, para diminuir o seu peso, o que não era muito bom para a segurança. Temos um exemplo de uma dessas canoas ancorada no Porto da Pedra, em Cariacica, que se partiu ao meio e perdeu toda a valiosa carga de café, por não suportar o peso após uma chuva torrencial, na noite de 25 de outubro de 1881. 


O desenvolvimento acelerado da colônia de Santa Leopoldina, principalmente após a visita de Dom Pedro II, em 1860, e da criação e emancipação do município, ocorrida em 1887, trouxe um aumento significativo da movimentação de cargas no Porto do Cachoeiro. Em função disso, foi implantado no rio Santa Maria um serviço de transporte fluvial através de pequenos vapores, cuja embarcação de passageiros era chamada de lancha pela população. O concessionário desse serviço era a empresa Mac Iven, que também tentou a implantação de embarcações metálicas para o transporte de café, ambos sem obter o esperado sucesso. 


A hegemonia do transporte de café era mesmo das grandes canoas, que em média tinham cerca de 16 metros de comprimento, com 1,70 metros de largura e 1 metro de altura. Havia uma diferença de cerca de 20 centímetros entre a largura da popa e da proa, como forma de diferenciação entre essas partes da canoa. A carga média era de 100 a 120 sacas de café, o que somado ao peso de cerca de 10 passageiros que também viajavam nessas canoas, além de suas bagagens, beirava oito toneladas.


Havia duas opções para a viagem dos passageiros. Uma, que dava direito a um local sobre um estrado, evitando o contato com a umidade do fundo da canoa, além da cobertura de um toldo para se proteger do sol. Era chamada de estância, uma espécie de primeira classe. A outra opção era sobre a carga mesmo, a segunda classe, sem qualquer outro nome.


A experiência e a habilidade dos canoeiros na condução dessas canoas transmitiam aos passageiros uma boa dose de confiança, pois a maioria dos acidentes que acontecia no transporte fluvial do rio Santa Maria gerava apenas prejuízos materiais, com a perda da carga, principalmente em época de cheias. Cinco homens atuavam na condução da canoa, com o mestre responsável pelo leme e quatro outros canoeiros remadores. Mas há registros de acidentes fatais, como um naufrágio ocorrido em 17 de maio de 1904, com a canoa já alcançando o Lameirão, na baía de Vitória, quando dois canoeiros perderam a vida.


Os canoeiros mais experientes eram muito respeitados pelos comerciantes e pelo povo em geral e alguns deles se tornaram personagens da história de Santa Leopoldina e tem os seus nomes lembrados até os dias atuais, como os mestres Emilio Rodrigues, o Fagundes, nascido em 1878 e João Paulo, o João Furamonte, nascido em 1892. Também ficaram na história os canoeiros Antônio Correia de Freitas, o Alberto, nascido em 1877, Horácio Conceição, o Gioabeiro, nascido em 1892 e Joao Quintiliano Junior, o Cabral, nascido em 1895. Estão sendo considerados aqui apenas os canoeiros profissionais, que trabalhavam no transporte de mercadorias de Santa Leopoldina a Vitória, porto a porto. 


A profissão de canoeiro também exercia um fascínio e uma admiração na população de Santa Leopoldina. A festa dos canoeiros, por exemplo, que acontecia em 1º de janeiro, atraía grande fluxo de pessoas à missa que era celebrada na igreja matriz, onde todos os canoeiros compareciam vestidos com roupas claras e chapéus brancos. Além da missa, a grande procissão de canoas enfeitadas com flores e fitas também gerava grande expectativa na população, que a acompanhava a pé até Monte Alegre, na altura da atual ponte do Nazareth, ida e volta.


Havia também uma união muito grande entre os canoeiros, exemplificada por um fato que ocorreu com um deles enquanto trabalhava, em 17 de junho de 1892. Ao descarregar uma carga e levá-la em direção a uma casa comercial, o canoeiro esbarrou involuntariamente em um sujeito chamado Paulo Gandiner, que armado com um revolver e um punhal, esbofeteou e humilhou o canoeiro, gerando revolta nos seus companheiros de profissão. A polícia foi acionada, mas o pequeno efetivo de um delegado e um praça não foi suficiente para prender o perigoso Paulo Gandiner, sendo necessária a ajuda dos demais canoeiros para que a prisão fosse efetuada.


Esse fato transformou alguns canoeiros em autoridades informais na cidade, o que gerava inveja e insatisfação em alguns cidadãos que não concordavam com o poder que informalmente fora dado aos canoeiros. 


Outro fato que mostra o grau de unidade e companheirismo que havia nessa profissão é a greve de canoeiros deflagrada em março de 1909. Insatisfeitos com a redução do valor pago por viagem, que para os mestres caiu de 25 mil reis para 17 mil reis, e para os canoeiros, de 20 mil reis para 13 mil reis, cerca de 100 profissionais cruzaram os braços e “estacionaram” 27 canoas à beira do rio Santa Maria, ao longo do Porto do Cachoeiro.


Na ausência de um juiz, e preocupados com a violência, os chefes do movimento solicitaram ao delegado Claro Pitanga que garantisse a ordem enquanto eles negociavam com os patrões. E com a intervenção do Centro União dos Estivadores, entidade localizada no Porto de Vitória, mas à qual a maioria dos canoeiros era associada, a greve teve fim naquela mesma semana.


Realmente a Santa Leopoldina do século XIX e do início do século passado era um lugar pujante, com um intenso movimento portuário, onde pessoas e mercadorias deslizavam velozmente sobre as volumosas águas do rio Santa Maria, indo ou chegando da capital.


A atual redução da vazão do rio Santa Maria, que nem de longe lembra o volume de água de outrora, só nos permite imaginar com melancolia os sons daquela atividade frenética, desde a cantoria dos canoeiros até o soar dos guizos que eram soprados pelos mestres quando partiam e quando chegavam. Eram esses sons que identificavam a chegada ou a partida de cada canoa, pois eram completamente diferentes entre si.


E isso me faz tentar imaginar como seria o som do guizo da canoa Julieta, da canoa Olga, da Augusta, da Lola, da Flor do Cachoeiro, da União, da Escorrega, da Rio Bonito, da Figueira, da Flor de Santa Leopoldina, da Só se vê, da Maria Luiza, da Santa Maria e de outras tantas canoas que transportaram pessoas e mercadorias de Santa Leopoldina a Vitória, e vice-versa, por mais de 50 anos de riqueza e glória. Pena que essa riqueza ficou no passado, mas a glória podemos relembrar... 



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